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Chispes e Couratos

Neste espaço não se discriminam gostos, fetiches, taras, manias, desvarios ou inclinações gastronómicas. Só não toleramos seguidores fanáticos do tripadvisor.

Chispes e Couratos

Neste espaço não se discriminam gostos, fetiches, taras, manias, desvarios ou inclinações gastronómicas. Só não toleramos seguidores fanáticos do tripadvisor.

20
Set09

Uma Lady na Tasca

Convidado

Uma tarde de Agosto, calma e serena, lá fui tascar desportivamente com três amigos “machos” para os lados de Barcelos. Tinha sido avisada sobre a dita tasca e do que iríamos lanchar – iscas de bacalhau frito e unhato (com pêlo). O menu não me dissuadiu logo à primeira até porque há uns anos atrás tinha vivido essa experiência única de ir a uma tasca típica, designada Sá Carneiro, em Barcelos, e de outra que confesso não me recordar do nome, mas apenas que tinha fungos verdes nas paredes, que o pica no chão estava fantástico e que alguns dos comensais debatiam-se à procura da crista do galo.
No caminho, ia pensando nas graçolas de um comensal que achava que eu não seria capaz de comer num ambiente demasiado desleixado e só frequentado por homens. A dado momento, interroguei-me se com a idade teria mudado a minha capacidade de adaptação a espaços gastronómicos desprovidos de qualquer requinte e bom gosto. Mesmo que tasca  signifique taberna ou casa de pasto, imunda, reles, valerá o risco se os petiscos forem bons, logo, convenci-me.
Ao entrar na Isaurinha senti-me absorvida pelos cheiros rústicos e pelos olhares de alguns tasqueiros que, porventura, pensaram que talvez tivesse vindo ao engano. Lançei o meu olhar em redor, examinando os pormenores distintivos da pequena casa – mesas simples, com bancos individuais, e junto à janela onde nos sentámos um vaso de flores murchas e  umas cortinas brancas, de renda e tecido barato e tosco. Os petiscos já mencionados apresentaram-se à mesa sem qualquer pretensiosismo, fazendo-se acompanhar de um fraco verde branco da casa, servido em malga, pouco fresco. Feitas as contas, apercebi-me que me faltava 0,20€, pelo que pedi a um dos meus amigos chispesianos para me emprestar e qual o meu espanto quando dois ou três homens à porta da tasca me ofereceram de imediato a moeda em falta. Não aceitei, mas agradeci a gentileza. Que espírito de solidariedade se vive numa tasca!

A idade e a experiência de vida tornam-nos cada vez mais exigentes na degustação de vinhos, petiscos e afins. Continuo, porém, receptiva a novos espaços com ou sem requinte, desde que a comida fale por si. Uma lady sê-lo-á sempre independentemente do sítio onde comer, pois o importante é o saber-estar em qualquer lugar.

A. Corunha

13
Abr09

A dualidade das tascas

Marco

O ser humano é rico nas suas escolhas e interpretações, o que, de facto, leva a que sejamos todos diferentes nos gostos preferências e hábitos. Esta diferença entre indivíduos, nada mais faz com que nos preocupemos ainda mais com aquilo que nos une, as características que partilhamos com os outros e que nos tornam semelhantes.

Procuramos sempre alguém com quem nos identificamos e isso observa-se em tudo, nos colegas da escola, amigos, companhias e namoros… o que nos faz chegar ao ponto fulcral que é o de encontrar alguém que assuma as suas diferenças, mas que partilhe os nossos gostos e loucuras gastronómicas.

Neste sentido, as tascas ocupam um lugar de destaque e de grande componente social pois permitem que as diferenças entre indivíduos se esvaneçam, numa razão inversamente proporcional ao vinho ingerido, ou mesmo o contrário, em que pessoas que sempre concordaram em tudo comecem a discutir que nem uns desalmados, geralmente também numa razão inversamente proporcional ao vinho ingerido!

Braga vs Guimarães

O que realmente importa é que se gere a concórdia, e isso vulgarmente acontece numa tasca à volta de umas alheiras, dum bacalhau bem demolhado, dum cabrito temperado ou vitela com umas pedrinhas de sal, sítios onde as diferenças se esfumam e são colocadas em segundo plano, onde vemos bracarenses a abraçar vitorianos, jeovás a sorrir para católicos, comunistas a brindar com homens de direita e mesmo mulheres a dizer bem umas das outras!

Foi na passada semana, na Póvoa de Lanhoso, que sentados num banco de madeira corrida, a degustar um bacalhau assado com batatas a murro e a esvaziar canecas de riscas azuis com verde tinto que constatamos isso mesmo… tal como diz o poeta, afinal aquilo que nos une é sempre mais do que aquilo que nos separa!

11
Jan09

Sinfonias: o que é um restaurante com requinte?

JP

O português tem um sistema bastante simples e funcional de categorizar os restaurantes, que infelizmente os guias turísticos não reproduzem:

- tasca
- restaurante de diárias
- restaurante requintado

Obviamente, todo o português (homem) direcciona os seus desejos para a tasca. Faz parte do imaginário masculino, onde não há tabus e tudo é permitido. Os homens têm fantasias com tascas, em orgias de comida e bebida; falam alto, tocam-se, dizem caralhadas; onde não são censurados pelas suas taras, por mais estranhas que sejam (e há gostos para tudo): chispes, couratos, rabos de bacalhau fritos, a gordura nas bordinhas das costoletas, caracóis, fígados fritos em cebolada, sangue e sabe lá Deus que mais. Numa tasca ninguém nos olha de lado: "este tipo não sabe estar à mesa" ou "este homem é nojento".
Nas tascas toca-se na comida, lambe-se dedos, chupa-se ossos, rilha-se espinhas, esquiça-se dentes, levam-se as unhas até onde nunca nenhum dedo tinha estado antes, libertam-se impurezas, lambuza-se a camisa e acariciam-se pratos com pedaços de pão.  Na tasca, tudo é permitido. Na tasca os homens realizam-se enquanto homens e fazem coisas que nunca têm vontade de experimentar em casa. Por isso, muitas esposas ficam escandalizadas quando descobrem a outra vida que os homens levam nas tascas: "o quê, tu foste comer trinta e sete sardinhinhas fritinhas, tostadinhas, com cabecinhas e tudo, e quando sou eu a fazer dizes que te atacam a figadeira?".

Os homens sabem bem do que estou a falar.
Neste sistema, há que concluir que o restaurante requintado, para a maioria dos homens, constitui um local de constrangimentos, onde é obrigado a representar, a fingir, a reprimir o alterego.
Mas antes de mais, é preciso definir o que estabelece que um determinado restaurante vá para a categoria dos requintados:
- É o local onde se vai essencialmente com a companheira(o);
- Tem música instrumental de fundo;
- Os funcionários usam farda, não apresentando manchas visíveis, o que revela pouca intimidade com os alimentos;

- Só com grande esforço encontramos um vinho por região abaixo dos 12€, mesmo que a carta inclua vila régia, borba, monte velho ou casal garcia;
- A nossa companheira está sempre a dizer: "endireita as costas, estás muito curvado" ou "já sujaste a toalha!" ou "essa é a faca de peixe e não de sobremesa" ou "não pegues com a mão" ou "estás vermelho, já bebeste demais";
- Aparecem termos nas cartas como "caramelizado", "salteado", "laminado", "crocante" (nenhum tasqueiro que se preze diz crocante) ou "confitado";
- O menú apresenta pratos que parecem experiências científicas complexas: "Foie de Tamboril", "Magret de pato", "Risotto de Cogumelo", "chutney de beterraba" ou "Carré de cordeiro". Até temos vergonha de pedir para mudar de canal para o jogo do porto, afinal os gajos devem passar a vida a estudar química ou física quântica e nós para ali a pensar num jogo de bola;
- Robalos, douradas, costoletas de vitela a 35 € o quilo, que nos fazem odiar todos seres vivos deste planeta, em que um pedacinho de qualquer animal vale tanto como 55 quilos de tantas cidadãs por esse país fora; faz-nos acreditar que se deveria investir mais na clonagem para acabar com esta roubalheira;
- Os alimentos constituem motivos decorativos do prato, o cozinheiro armado em designer, como se tudo obedecesse a estritas indicações nutricionais, respeitasse a inviolável pirâmide dos alimentos e as regras internacionais da luta contra obesidade e não simplesmente para insuflar margens de lucro;

  - O cozinheiro é um autor, não é para ser compreendido; quantos de nós não se sentem nestes restaurantes como numa exposição de arte contemporânea: "OK, vou fazer um ar entendido e introspectivo, para não parecer um lorpa".

 

SINFONIAS

Foi neste contexto que, já há algum tempo, conheci o restaurante Sinfonias, numa pequena protuberância junto à estrada Braga-Barcelos. Na altura, fui desconfiado das virtudes do espaço, mas a combinação de requinte com freguesia não urbana chamava-me à atenção.
Gosto quando vou a um restaurante e me trazem um fartote de entradas. Quando não o fazem, obriga-me a fazer contas: "ora 6 € a alheira e 4 € o mexilhão". Entro em conflito com o espaço, percebo que o truque do dono é dizer, "depois não se queixe do preço, foram 19€, mas estava aí tudo muito explicadinho, você é que é um lambão". Não senhor, se as entradas vêm para a mesa percebemos que ninguém é irresponsável de nos trazer 20€ de entradas sem o nosso consentimento. OK, ninguém, não é bem assim! Alguns trazem as entradas ao mesmo tempo que a carta, e ali fico eu a olhar para a alheira, o picadinho de orelha, as moelinhas, os cogumelos, o camarão enquanto mastigo os preços. E é difícil chegar a acordo com a companheira, ela prefere a alheira e dispensa a orelha, eu prefiro a orelha e dispenso os cogumelos e lentamente instala-se um mau ambiente e pensa-se: com os meus amigos não é nada desta treta, na tasca é que eu sou feliz.
Bem, surpresa das surpresas, o Sinfonias disponibiliza logo a abrir um conjunto de entradas sóbrias, mas variadas: pãozinho de alho, azeitonas bem temperadas e patés caseiros. Está bom, sim senhor, já acomoda e tem que se lhe diga. Acrescente-se uma alheira de caça, já por decisão do cliente, e fica-se mais sossegado à espera do prato principal.
O ambiente é sóbrio, nada intimidador, e o pessoal simpático. Como cabeça de cartaz, filetes de robalo com batatas a murro e legumes mediterrâneos, bem salteados. Agradável, por vezes surpreendente no modo como elaboram o design do prato. Mas no final aquele sentimento de o estômago sair bem almofadado. Importante verificar que a factura não ofende o bom senso. É um restaurante com requinte? É. Mas, no melhor do sentidos, talvez não seja assim tanto. Mas que raio.

07
Set08

“El” Armazém

Paulo

Acho que é comum a todos os apreciadores de comida quando se vai de visita a qualquer lado procurar ir comer a um sítio típico. Uns porque sabem que normalmente é onde se pode comer muito bem e a bons preços; outros porque desejam sentir melhor o povo e a tradição; e há quem simplesmente queira se gabar de ter comido no sítio mais típico da localidade.

Claro que quem vai em busca disso sabe o que o espera geralmente para além da boa comida, ou melhor, o que não o espera: não se conta encontrar um local com boa apresentação, com aspecto cuidado, com um serviço requintado nem sequer esmerado, que siga as mais básicas regras de etiqueta ou até que dê uma importância por aí além a questões higiénicas (por exemplo, as visitas às casas de banho são, muitas das vezes, aventuras para mais tarde recordar). Quem já entrou numa qualquer tasca sabe do que eu estou para aqui a dizer.

Eu, pela parte que me toca, e não sendo pessoa facilmente impressionável, já com vários anos de experiência com tascas, gosto de ir aos locais típicos pelo bem que se come e pela excelente relação qualidade/preço.

Ora, quando o destino se trata de um local turístico o desejo de procurar um local típico aumenta ainda mais, para fugir um bocado aos restaurantes que vivem apenas de alimentar os turistas e de se alimentarem dos turistas, em que a maior parte das vezes sentimos que o que comemos não esteve à altura do preço que pagamos…

No meu último local de férias no sul de Espanha (Isla Cristina, poucos kms. a seguir à fronteira, muito popular entre os portugueses, certamente também porque o preço do combustível não permite ir muito mais longe), procuramos logo no início encontrar o restaurante mais típico da terra. Quem tem experiência nestas coisas, sabe que em zona de peixe as buscas devem efectuar-se nas ruas mais próximas da lota de pesca. E foi assim que rapidamente encontramos “El Armazém”, nome com que decidimos baptizar o “Mesón El Pescaíto Frito – Casa Pepe”. Lamentavelmente, a fome antes e a barriga cheia depois nunca nos permitiram ter a lucidez necessária para tirar uma foto ao local, já que não seriam necessárias explicações adicionais. Como facilmente se percebe pela alcunha (e pela imagem aérea do local que fui buscar ao Google Earth), o restaurante fica num antigo armazém, a maior das duas salas até tem o habitual telhado de armazém a uma dezena de metros de altura. E não tenham dúvidas de que é mesmo o sítio mais típico da zona para se comer. Tão típico que das várias vezes que lá fomos, éramos os únicos não espanhóis lá. As paredes alternavam quadros de sugestões de petiscos escritas a giz com imagens religiosas e ventoinhas. Os empregados eram alguns deles indubitavelmente antigos pescadores, então um deles era uma personagem fantástica, já na casa dos sessenta (pelo menos era o que parecia, porém podemos ter sido enganados pela sua pele queimada e desgastada por muitos anos de mar, sal e sol), mas com um porte e agilidade de um jovem, conseguíamos perfeitamente imaginá-lo num qualquer filme do Tarantino com o seu cabelo cheio de gel penteado para trás com estilo.

Como seria de esperar, lá apenas se comia pescado, todo o género de pescado, fresco mais fresco era impossível (aliás, aos fins de semana é costume ouvir-se muito “no hay” em resposta ao pedido de diversos peixes), tudo sempre fantástico o que comemos, e muita coisa lá comemos, desde atum a chocos, passando por enguia, polvo e todo o género de peixinhos fritos.

Os preços bastante acessíveis fazem com que a casa esteja sempre com muita gente, tivemos noites em que os clientes e os pedidos eram tantos que os empregados não tinham mãos a medir e muito menos cabeça, já que nessas situações normalmente a conta apresentada não continha parte das iguarias saboreadas. Houve quem dissesse que o “esquecimento” fazia parte de uma estratégia da gerência para voltarmos lá mais vezes, o que até poderá fazer sentido se pensarmos que o gerente deve ser algum velho pescador que passou demasiados anos no mar com a cabeça ao Sol.