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Chispes e Couratos

Neste espaço não se discriminam gostos, fetiches, taras, manias, desvarios ou inclinações gastronómicas. Só não toleramos seguidores fanáticos do tripadvisor.

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05
Out16

O bolinho de bacalhau e o psicopata português

JP

Já não me lembro de quando comi o primeiro bolinho de bacalhau. Ele estava nos aniversários, nos natais, nas festas da guarda fiscal, nos dias especiais, nos passeios de escola e em qualquer convívio. Para mim, o bolinho brilhava no centro da mesa mais do que as outras entradas, os enchidos, o prato principal, os doces e até mais do que as outras crianças.

O bolinho de bacalhau tem um efeito instintivo em mim, provoca uma reacção química e biológica, um cio gastronómico, sobre o qual não tenho qualquer tipo de controlo. Sei que nessas alturas de cio tenho uma absoluta e descontrolada atracção por bolinhos de bacalhau.

O cio acontece sempre que vejo um prato de bolinhos no centro da mesa. Não interessa se a seguir vem cabrito, bacalhau ou cozido, não interessa as companhias, eu simplesmente deixo de conseguir estruturar um pensamento lógico. Tento abstrair-me, contar objectos, beliscar-me nas pernas, falar de futebol, mas irremediavelmente vou tentar sacar o máximo de bolinhos que puder, muitas vezes transpondo os limites do bom senso e da educação.

A minha paixão por bolinhos é tão primordial que só posso considerar que venha inscrita no meu ADN. Há por lá uma molécula com a gravação: este indivíduo adora bolinhos de bacalhau, ele pode não o saber, mas sob várias ameaças à sua integridade, e num contexto muito específico, ele aceitaria ser sodomizado em troca do último cesto carregadinho de bolinhos de bacalhau feitos pela avozinha.

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Só muito raramente encontro bons bolinhos de bacalhau e fico realmente ofendido quando em alguns tascos servem pasta de batata ensopada com água de bacalhau. Disparam-me os níveis de indignação como à malta que se revolta quando vê um cão a ser maltratado. Apetece-me que os responsáveis sejam condenados a coimas obscenas, apontados na praça pública, humilhados nas redes sociais. Sim, eu estaria lá a comentar, a partilhar postas infectadas de indignação. Deviam-te fazer o mesmo a ti, cabrão.

O desprezo que certos indivíduos guardam para o bolinho diz muito sobre estes seres humanos. Não se pode confiar num tasqueiro que tem coragem de apresentar ao público um bolinho de bacalhau contrafeito. Só pode querer dizer que a infância foi problemática e quando digo problemática, quero dizer patologicamente problemática. Sim, quase todos a tivemos, ou não fossemos na grande maioria filhos de pais portugueses, mas no meio disto, nunca ter provado um bom bolinho de bacalhau, faz disparar o sinal de alerta em qualquer consultório de psiquiatria.

Na infância nunca provaste um bolinho recheado de bacalhau, estaladiço por fora, cremoso por dentro (sim, roubei de um banal anúncio de gelados, que provavelmente se inspirou naquilo que todos sabíamos sobre o bolinho de bacalhau), com um travo do azeite, salpicado de salsa? Isso é descobrir num tasqueiro uma infância negra, como se algum adulto lhe tivesse andado a mexer na pilinha, o que só pode descrever um presente de despeito, ódio pelos seres humanos, desconforto, a massa e o molho com que se fazem os psicopatas da restauração nacional.

Não duvidem, na restauração concentra-se a grande maioria dos psicopatas portugueses.

O grosso destes desequilibrados, em vez de acumular cadáveres, como o fazem muitos dos seus congéneres norte-americanos, obtém prazer com a tortura lenta, prefere promover mortes demoradas, destruir palatos, arruinar gargantas, chafurdar estômagos, envenenar fígados, enterrar memórias (da boa comida), dissimular-se de bons cidadãos e amigos dos seus clientes enquanto os apodrecem lenta e sadicamente. Os mais sofisticados vão acompanhando esse apodrecimento ao longo dos anos.

Estes algozes são muito mais refinados e praticamente impossíveis de identificar e de deter. Ao contrário dos norte-americanos, que raptam, estrangulam ou retalham, e siga para outra, estes psicopatas massacram enormes grupos de vítimas, entupindo-lhes pacientemente as artérias. Não vamos falar dos óleos, neste momento não são para aqui chamados, nem dos líquidos servidos nas diárias feitos de água e pó, fiquemo-nos pelo bolinho de bacalhau. Pois é, sempre que um tasqueiro me serve um bolinho desses eu tenho quase a certeza de identificar um psicopata.

Certo, pode haver outras explicações. O homem talvez não seja um psicopata, pode ser tão só um filho da puta, no melhor dos sentidos da língua portuguesa. O espertalhão que se considera mais inteligente que os outros e que fez as contas para ganhar mais alguns cêntimos por bolinho, confiando que o cliente come tudo o que lhe puserem na pia. Sim, porque ele acredita que os restaurantes só ganham dinheiro se fizerem uma lavagem cerebral aos clientes, por via oral, até os tornarem em sem abrigos da tradição gastronómica, proprietários falidos da imensa riqueza da cozinha nacional.

Este espécime é daqueles para quem só interessa as pessoas do seu sangue, que vivem na mesma habitação e que provavelmente são seus descendentes. Porque há todo um conjunto de familiares que ele não respeita. Este filho da mãe continua a sentir que chegou ao planeta terra sem ter vindo pelas ramificações seminais que unem todos os seres humanos. Não, ele e a família lá de casa estão desligados, sabe-se lá como, dos nabos que os rodeiam.

Há ainda os ignorantes, coitados. Mas coitados, talvez não. Vamos continuar a ser complacentes com a ignorância na restauração nacional? Não sabe, que feche portas, em vez de continuar a contribuir para a extinção dos bolinhos de bacalhau. Ninguém aceita com esta serenidade a ignorância num médico, num mecânico, mas temos de a aceitar no Zé do Tasco. Convenhamos, estes simpáticos indivíduos circulam há anos em sentido contrário, abalroando bons cidadãos e famílias inteiras nas suas viagens de regresso à boa comida portuguesa.

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