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Chispes e Couratos

Neste espaço não se discriminam gostos, fetiches, taras, manias, desvarios ou inclinações gastronómicas. Só não toleramos seguidores fanáticos do tripadvisor.

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23
Set09

"Ide e cheirai vinhos"

JP

Os novos cursos de iniciação às provas organolépticas de vinhos aceleraram o movimento histórico de certificação em massa do povo português. Eu, que tantas vezes arremessei bitaites contra as sinuosas estratégias educativas do nosso governo, lá acabei com um certificado de provador de vinhos.
Provar um vinho oferece-me uma rara dignidade e elevação intelectual. Em nenhum outro momento consigo parecer tão complexo e intenso. Mesmo que, no restaurante, de copo na mão, com o funcionário plantado ao lado a observar-me atentamente, eu mantenha um silêncio introspectivo enquanto desespero: "que caraças, maldito nariz. Tenho de ser operado. Um vinho de 20€ e nem a rolha me cheira. Ao menos mandava para trás e pedia um Monte Velho".

Roda dos aromasO curso decorreu em quatro sessões a ver powerpoints, a enfiar frascos de cheiros pelas narinas e, inevitavelmente, em experiências sensoriais com vinhos. Um ritual: pegar no copo pela base e observar o vinho;erguer o copo, semicerrar os olhos; uma farejadela ao interior, agitar suavemente e dar a snifadela estrutural. Copo nos lábios, verter o néctar para a língua, conduzi-lo por um circuito pela boca até à saída para o copo de plástico. Depois, lavar os vestígios da experiência com água. Neste processo, eu decorava os passos como se de uma dança se tratasse. Dois para a frente, um para trás, ups... enganei-me. E enganava-me.
Às tantas já agitava o copo depois de beber, olhava para o vinho quando o copo estava vazio e cuspia a água. Não minto, se disser que na última sessão bebi os quatro vinhos sem tirar nada ao fígado. Ele existe é para isto mesmo.
Das dezenas de aromas que me passaram pelo nariz, consegui detectar dois, para além do de rolha e um de suor (julgo que meu).
E é assim que no final somos abandonados no mundo real, com um certificado nas mãos: "ide e cheirai vinhos".
Mas, inevitavelmente, neste género de cursos espera-nos sempre um estágio... no ridículo e no patético.
Estava eu a meio do "estágio", no Hotel das Termas de Monção, a executar com mestria todos os procedimentos da prova.
Sem dúvida, frutado.... sim, frutado. Tenho a certeza. Mas... espera aí... noz?... pareceu-me noz... já não a sinto... sim, é noz. Ah não, não me vou calar, senão, aparece outro espertinho que diz «noz» e depois eu só vou poder dizer: "ah, eu também detectei, só que não disse porque era óbvio de mais". Não senhor, olhei para o chefe: "tem um aroma intenso a noz. Extraordinário e complexo".
Meu Deus, eu detectei a noz. Não posso ser apenas um turista no mundo dos vinhos. Eu sou alguém, alguém capaz de detectar noz. Sim, NOZ. Meus senhores: rolha, qualquer um fareja e «frutado» é canja. Frutado, mesmo que se atire à sorte, quase sempre se acerta. O morango é fruta, o melão é fruta, a amora é fruta e, bem vistas as coisas, a uva é fruta. Agora, noz, é só para um grupo restrito de apreciadores. Sim, eu deixei de ser um mero bebedor e elevei-me à categoria de apreciador. Eu tenho de me inscrever num curso avançado, só para especialistas. Fui mais uma vítima do nosso sistema de ensino, um sobredotado que a escola não soube potenciar desde a adolescência. Onde é que eu estaria hoje? Eu e o meu nariz.
Pois, noz... Noz?
O chefe de sala olhou para mim com um sorriso: "sim, tem base de sustentação".
No fim de contas, eu tinha acabado de trincar dois bons pedaços de broa com frutos secos. O rosto dele começava já a abrir em gargalhada, mas esperava a minha aprovação, para eu não ficar ofendido.
Maldição. Claro que sorri e até gargalhei. Eu estava a brincar. Estou a ver que não caiu.
E já agora, podia igualmente ter detectado os figos secos, que também estavam na broa. E se ele não tem aparecido logo ao início, eu teria cheirado a pimenta... do porco preto.
Agora percebo como se sente um indivíduo quando volta ao mundo real com um certificado das novas oportunidades.

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