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Chispes e Couratos

Neste espaço não se discriminam gostos, fetiches, taras, manias, desvarios ou inclinações gastronómicas. Só não toleramos seguidores fanáticos do tripadvisor.

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24
Set15

O bacalhau do Victor

JP

Quando o Victor abriu o seu restaurante, não imaginaria que hoje Victor seria quase reconhecido como uma espécie de bacalhau, a par do gadus morhua, do macrocephalus ou do molva.

Entre os clientes é comum dizer-se que vão comer o bacalhau do Victor, o que em vez de centrar a atenção no lugar onde o vão degustar, destacam a quem pertence o bacalhau, levando-nos a supor que o Victor tem um bacalhau que os outros não têm: ou porque o vai pescar, ou porque faz criação própria, num tanque nas traseiras da casa, ou porque é uma espécie única que o Victor terá criado, cruzando um bom macho gadus morhua, de lombo saliente, com uma das fêmeas mais férteis dos sete mares. A espécie victor, o boxer do mundo dos bacalhaus.

Inevitavelmente, o impacto do Victor estendeu-se da gastronomia à semântica. Victor está a deixar de ser apenas um nome próprio para se assumir ora como substantivo, peixe gadídeo em posta que vai de um lado ao outro do prato e não é um prato pequeno, ora como adjectivo, diz-se do bacalhau que solta lascas longas e suaves lambidas em azeite do bom.

No bacalhau do Victor, Bacalhau assado com batatas a murro, não há nada que enganar: uma posta imponente de bacalhau, batatas, azeite, alho e cebola.

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Uns inventam outros preservam. Com tanto ruído que há hoje no mundo da gastronomia, de chefs, livros, concursos e migrações de ervas e temperos, o Victor ajuda a lembrar-nos porque é que gostamos tanto de bacalhau. Não há frituras, molhos, maioneses ou combinações que possam iludir a falta de qualidade. Não há invenções, intervenções, interpretações, reduções, apenas se convocam as qualidades naturais dos produtos.

É a negação do fetiche na psicologia gastronómica. Não há cama de legumes nem chaise long de molhos, não há submissões a confitados nem compotas, não há asfixia com emulsões nem caramelizados, não é só badana, nem é só lombo e o cliente é que faz o seu empratamento.

 

Uma das virtudes do Victor é o ambiente familiar e os portugueses sublimam a relação da família com a cozinha. Sem a família à moda antiga, os nossos melhores pratos ter-se-iam perdido no tempo. Enquanto se discutisse os problemas de comunicação no casal ou a falta de maturidade do homem, ninguém se lembrava de encher as chouriças; com o filho a querer assumir a sua homossexualidade e a filha a trocar de namorados, o povo ia esquecendo-se que o pica no chão levava sangue e mais tarde o arroz começaria a vir acompanhado de batata frita.

Além disso, a emancipação das mulheres e pratos tradicionais sempre foram incompatíveis. Como conciliar o aperfeiçoamento das papas de sarrabulho com a importância do orgasmo feminino? Como é que mulheres preocupadas em equilibrar carreiras profissionais com vida familiar deixariam a carne da chanfana a estufar durante 4 horas? Não é possível conhecer alguns dos segredos da sensualidade depois dos 40 e saber lavar bem as tripas utilizadas nas alheiras, elaborar um bom currículo e depenar um galo com destreza, vestir cuequinhas comestíveis e preparar uma boa lavagem para os porcos. As revistas femininas teriam simplesmente exterminado a nossa cozinha, “Matança do Porco: quando ele não lhe dá a atenção que você merece” ou “Conheça as tendências nas unhas para o fumeiro deste ano”.

Por isso, sentir o ambiente familiar no victor, na decoração das salas e no atendimento, alimenta uma certa sensação de conforto e de proximidade com a nossa cozinha.

 

O Victor poderia ter seguido uma carreira de palestrante motivacional e provavelmente teria ajudado muitos negócios a não soçobrarem por falta de confiança. Há que respeitar o homem pela confiança zen no seu produto e a convicção da sua carta: Bacalhau. O Victor é uma espécie de Mr. Miyagi para os jovens karate kids da restauração nacional.

Claro que também há por lá um bife ou costeleta para as crianças e algumas companhias duvidosas, mas, essencialmente, é o que se pode chamar de restaurante “monocarta”.

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 Não vamos a este restaurante porque é mais perto, mais barato, porque queremos ser surpreendidos, porque o cozinheiro é bom, porque se come muito ou porque o ambiente é sossegado, vamos movidos pelo desejo.

O Victor, que não é um freudiano, parece ter compreendido bem Deleuze e percebeu como funciona a máquina do desejo. Nós nunca desejamos apenas um bacalhau, desejamos um conjunto de coisas que se implicam e envolvem umas às outras.

Vamos ao Victor pelo Bacalhau, mas calma, não resisto aos preliminares, bolinhos de bacalhau e alheira. Só depois o bacalhau assado, sim, mas nunca sem as batatas a murro, tostadas e macias. Mas calma, calma, e o azeite? Sim, o azeite e as rodelinhas de cebola. Isso, isso. E com bom vinho… ó meu deus, com vinho, muito vinho... E o leite creme, senhores? Esperem, esperem, isto não pára, agora desejo que seja num ambiente rústico, sim senhor, mas luminoso. E não esquecer um grupo de amigos e as conversas cada vez mais turvas…

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